Inquietude VI (Infância)

Belo Horizonte, 29 de março de 2005 (terça-feira) – 16:17


Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade e noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra
Vai pela serra
Vai pelo mar
Cantando pela serra do luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar
No ar

(GULLAR, Ferreira. O trenzinho do caipira)

Quando criança, eu costumava pensar que era aquele menino que ia no trem. E ficava imaginando as maravilhas que conheceria ao viajar por caminhos tão belos. Naquele tempo, eu ouvia histórias infantis ainda em discos compactos, coloridos, e podia acompanhar os textos nos livrinhos que vinham junto com eles.

A do trenzinho era uma das minhas favoritas, embora seja difícil falar qual delas eu realmente preferia. Tinha uma do papagaio que queria sair da gaiola. E também aquela do urubu malandro que capturava uma pomba rolinha para vender aos homens inescrupulosos. Eu torcia, torcia para que o trenzinho chegasse ao seu tão sonhado destino, me levando com ele. E para que o papagaio fosse libertado. E para que a pomba rolinha se livrasse das garras do malvado urubu.

Não importava quantas vezes eu ouvisse cada uma daquelas histórias, a ponto de saber de cor todos os textos e gravuras que via constantemente nos livros. E, na semana seguinte, queria ouvir de novo, como se não soubesse o final. E vibrava. E me sentia feliz com os finais felizes daquelas historietas que também me permitiram conhecer um pouquinho da rica música brasileira. Nara Leão, Gal Costa e Chico Buarque eram os intérpretes daquelas fantásticas melodias, que levavam consigo letras não menos belas.

Hoje, consigo compreender melhor porque os grandes literatos, poetas, compositores, enfim, têm tanta predileção pela infância. É um lado tão romântico quanto aquele que sonha encontrar o par perfeito, a alma gêmea, a felicidade a dois. Por mais que pareça (ou seja mesmo) clichê dizer que as crianças é que são felizes de verdade, nossos corações não cansam de repetir aqueles sentimentos nostálgicos.

Quantas vezes, numa mesa de bar ou durante uma importante reunião cujo assunto já se desviou, não nos pegamos falando dos desenhos animados que assistíamos na TV, das músicas que costumávamos ouvir quando pequenos, das brincadeiras preferidas? E eram todas melhores do que as de hoje. Não há cartoons, “baladas” ou brinquedos que cheguem aos pés daqueles da nossa infância. É como comida de vó.

Curioso que, ainda hoje, ouvindo a voz de Edu Lobo entoar o poema de Ferreira Gullar sobre a melodia de Heitor Villa-Lobos (grandes artistas que, graças a Deus, meus pais me permitiram conhecer ainda tenro), acredito ser o menino que vai naquele trem, em busca dos mesmos sonhos de outrora. A vida, a cidade, a noite, tudo continua a girar sem destino, em busca do dia novo, da nova harmonia da vida.

Pela terra, pela serra, pelo mar, pelo ar, o trenzinho caipira vai nos conduzindo em direção àquilo que procuramos a cada dia de nossas vidas. No caminho, pedras, percalços e, por vezes, um descarrilamento. Mas sempre colocamos os trilhos no lugar, porque o caminho a percorrer é grande, e não queremos parar no meio. Alguns ainda tentam desistir, mas, ainda que pela curiosidade, são impelidos à frente. Normalmente, os que enfrentam os maiores obstáculos são os mais obstinados.

Hoje, os discos compactos e coloridos já se tornaram CDs, também compactos e coloridos, e posso ouvir o Edu Lobo cantar numa gravação digital, reproduzida por um aparelho que é bem mais de dez vezes menor do que aquele antigo “som” que desde criança aprendi a manusear, porque queria colocar os meus próprios discos, com todo o cuidado para não estragar.

E hoje, quando ouço o Trenzinho, ainda não me canso de repetir a faixa, que chega a fazer brotar lágrimas nos meus olhos. Hoje, pego o violão, tentando acompanhar a canção, mas meus dedos endurecidos pela falta de prática e os ouvidos, um pouco calejados pelas dificuldades do mundo, não me permitem ser fiel a toda aquela beleza. Então, fecho os olhos e procuro escutar com a alma, deixando que cada nota e cada palavra me evoquem um sentimento que é, ao mesmo tempo, novo e antigo. Alegre e triste. Nesses momentos, sinto-me plenamente feliz, porque ainda não perdi a minha capacidade de acreditar. De sonhar. De me emocionar de verdade. E de viver.

Na interpretação de Edu Lobo, conheci o poema de Ferreira Gullar, a música de Villa-Lobos. E naquele velho equipamento, na sala daquela casa que tanto amei em Ouro Preto, aprendi que existe um trem que pode nos levar para onde quisermos.

À querida amiga Marcinha, por quem meu carinho há muito deixou de ser simplesmente especial. (Que você realize todos os sonhos que acalenta, mas nunca se esqueça de que o aprendizado edificante é a chave para a verdadeira felicidade.)
03/04/2005 (domingo) – 12:56

Marcos Arthur Escrito por:

Inquieto. Curioso. Companheiro da Marina e pai do Otto. Ultramaratonista. Facilitador de aprendizagem. Sócio-fundador na 42formas. Escritor amador. Eterno aprendiz.

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